segunda-feira, 15 de junho de 2009

A língua é viva

do G1
http://revistaescola.abril.uol.com.br/lingua-portuguesa/pratica-pedagogica/lingua-viva-423717.shtml

A linguagem começa com um sopro. O ar que vem dos pulmões é modelado por inúmeras possibilidades de abertura da boca e movimento dos lábios e da língua. Sobe, desce, entorta, recolhe. A cada mexida são formadas vogais, consoantes, sílabas, palavras. Se você tivesse nascido e crescido isolado de outros seres humanos, provavelmente emitiria apenas gemidos. Apesar de ninguém saber exatamente quando surgiram os idiomas, há algumas certezas: a língua é viva, acompanha um povo ao longo dos tempos, expressando uma maneira de organizar o mundo em nomes e estruturas lingüísticas, mudando e reinventando-se com as pessoas.

As transformações acontecem nas ruas e nos prédios de grandes instituições, na linguagem dos sermões, das palestras, dos discursos de políticos e advogados (com seus vocabulários tão particulares). As mudanças também ocorrem na escrita, seja aquela feita com a ponta do lápis, na máquina de escrever ou no computador. Das poesias aos documentos, nada permanece igual por muito tempo. Existem as alterações que vêm naturalmente e ainda as que são determinadas por lei, como é o caso do Acordo de Unificação Ortográfica, elaborado em 1990 e recentemente ratificado pelo Brasil, que pretende aproximar as maneiras de escrever de todos os países que têm o Português como idioma oficial.

A fala e a escrita

Geralmente, a maneira de falar se renova mais rápido do que o modo como se escreve, já que este requer a padronização para ser compreendido por mais gente durante mais tempo. Alice Saboia, professora de pós-graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), explica que isso se dá porque a oralidade precede a escrita e é muito mais utilizada.

De todos os jeitos de se expressar oralmente e de registrar os termos que pipocam diariamente, só alguns são incorporados aos dicionários e se tornam eternos (enquanto durarem). Membro da Academia Brasileira de Letras (ABL) e um dos maiores gramáticos do país, Evanildo Bechara esclarece que um vocábulo entra no dicionário quando é usado amplamente e quando escritores ou certos profissionais sentem a necessidade de incluí-lo.
Calcula-se que existam mais de 300 mil palavras na Língua Portuguesa, mas o Aurélio traz 160 mil verbetes, e o Houaiss, 228 mil. No dia-a-dia, porém, utilizam-se de 1,5 mil a 3 mil deles. A expectativa é que um aluno de 1a a 4a série conheça pelo menos mil.

A língua faz um recorte do real e define, em palavras, os contornos do que vemos. Mário Perini, no livro A Língua do Brasil Amanhã e Outros Mistérios, cita a forma como diferentes idiomas categorizam as cores. Segundo ele, enquanto os portugueses dividem o espectro solar em seis cores – azul, amarelo, verde, vermelho, laranja e roxo –, os galeses (povo que habita o País de Gales, na Europa) usam apenas duas: gwyrdd, correspondente ao roxo, azul e verde, e glas, para definir as cores quentes (do vermelho ao laranja). “Eles percebem todos os matizes, mas criaram apenas duas categorias”, escreve Perini.

Por que muda?

“Mudanças são inevitáveis”, afirma Marcos Bagno, escritor e professor de Lingüística na Universidade de Brasília. A Língua Portuguesa deste texto que você lê, é a usada no Brasil, no século 21, em 2007, bem diferente do Português falado na década de 1940 e em épocas anteriores. No latim do Império Romano, mal se reconhece o tronco que deu origem ao nosso idioma (leia mais sobre as transformações no rodapé desta reportagem). Lá, solitate significava solidão. As derivações soidade e suidade aparecem em cantigas portuguesas do século 13 para expressar sentimentos relacionados à ausência da pessoa amada. Só no século 15, saudade foi incorporada à “última flor do Lácio”.

Bagno aponta os diferentes agentes de mudança. Um deles é o cognitivo, que diz respeito ao modo como se processa a linguagem no cérebro. Ao usar a analogia, altera-se uma palavra para adaptá-la a um modelo preexistente (por exemplo: friorento tem “or” por analogia com calorento). Na metaforização, há a transposição de sentido. Depois de um dia de trabalho, quando um falante diz “estou quebrado!”, ele não quer dizer que está em vários pedacinhos. Ocorre aí um exemplo de derivação do sentido original concreto para um conceito abstrato. Esses são alguns exemplos de fenômenos cognitivos.“Submetemos a fala a diversos processos mentais intuitivos e inconscientes, fazendo novas inferências”, explica o pesquisador.

A esses processos se juntam os fenômenos de ordem social e cultural. Modificam-se as formas de viver, as manifestações culturais e as organizações política e econômica da sociedade. Além disso, os povos se deslocam, se influenciam e se distanciam em vários aspectos. “A maneira como falamos hoje é muito mais próxima da falada no século 15 pelos portugueses do que a utilizada hoje em Portugal”, conta Ataliba Teixeira de Castilho, lingüista da Universidade de São Paulo (USP) e um dos consultores na criação do Museu de Língua Portuguesa, em São Paulo. “Era uma linguagem assisada, como se dizia ‘ajuizada’ na época, de fala devagar. Atualmente os portugueses mal pronunciam as vogais átonas.”

Diferenças no espaço

Há também uma série de palavras e construções usadas no Brasil e que, muitas vezes, se consideram erradas e caipiras, mas são exemplos da linguagem mais “correta” do passado. Castilho diz que construções recentemente ouvidas em Cuiabá, como “filha meu não casa”, eram utilizadas pelos colonizadores. E quando alguém diz “frecha” e “ingrês” (no lugar de flecha e inglês), acredite, está roçando na língua de Camões!

Ouvir algo que soa estranho é comum em um país com tantas diferenças. Ao falar sobre transformações na linguagem, Maria José de Nóbrega, formadora de professores e elaboradora dos Parâmetros Curriculares Nacionais de 5a a 8a série, resume: “As línguas não mudam apenas no tempo, mas também variam no espaço”. Ao estudar variações de origem socioeconômica, gênero, faixa etária, nível de escolaridade e região, é possível perceber esse dinamismo.

Cada grupo social é capaz de modificar o falar e o escrever, mas em geral, a população mais jovem é disparadora das mudanças. Maria José afirma que faz parte do papel da juventude se diferenciar, romper padrões e testar novidades. Professor de 8a série da Escola Internacional de Alphaville, em Barueri, na Grande São Paulo, José Eduardo Sena se surpreende com as gírias que os alunos trazem do universo da informática: “Na sala de aula, temos o privilégio de ouvir inovações lingüísticas em primeira mão”.

Até regras sintáticas sofrem alterações. É comum ouvir frases em forma de tópicos e não mais organizadas no padrão sujeito e predicado. Começa-se a frase com um assunto e depois passa-se para a ação – “A casa, roubaram os portões dela” é uma fala que já chamou a atenção dos especialistas, mas ainda não chegou às gramáticas.

Esse caso comprova a idéia de que o Português não padrão – aquele utilizado informalmente – tem suas próprias lógica e regras internas. Só não estão registradas. Luiz Carlos Cagliari, especialista em história da ortografia da Língua Portuguesa da Universidade Estadual Paulista (Unesp), afirma que todos os dialetos e variantes lingüísticas podem ser sistematizados e que, portanto a gramática tradicional é apenas o ordenamento de uma delas: o da língua-padrão.

Na cabeça dos jovens

O exemplo mais recente de todo esse dinamismo está na escrita cifrada usada na internet, que pode (e deve) ser discutida em sala de aula e usada em proveito da aprendizagem. O uso criativo da linguagem da comunicação via computador é uma novidade. Abreviações eram feitas desde a época do latim, mas nunca houve nada com a inventividade do internetês.“Trata-se de uma escrita praticamente instantânea, algo inédito”, comenta Ataliba de Castilho, da USP. Cagliari desmistifica a idéia de que essa variação seja fonética.“Toda escrita tem como objetivo permitir a leitura e não transcrever a fala”, diz.

“Muitos professores se alarmam e acham que o fim da língua está próximo”, declara Dileta Delmanto, formadora de professores e autora de livros. Outros, no entanto, procuram se adaptar à novidade. Janaína Batista de Lima, do Colégio Abgar Renault, de Belo Horizonte, está nesse grupo. Quando viu, nas provas da turma da 5a série, palavras escritas de forma diferente, como vc, eh e naum (no lugar de você, é e não), não entendeu nada.“Eu não sabia nem de onde vinham as letras agrupadas daquela maneira. Só quando utilizei a internet compreendi essa linguagem.”

Os especialistas acreditam que não há problema em discutir o uso desses termos na escola desde que os estudantes reflitam sobre eles e saibam que o local para praticar a nova criação é exclusivamente na internet. Uma dica: esteja sempre aberto às inovações trazidas pelos estudantes sem considerar a escrita errada nem alimentar preconceitos lingüísticos.

Idelbrando Mota de Almeida, professor de Ensino Fundamental e Médio no Colégio Estadual Olavo Alves Pinto, em Retirolândia, na Bahia, explica aos alunos o porquê do uso daquela linguagem e conversa com eles por chats ou sites de relacionamento, como o Orkut, mas não abre mão de escrever de acordo com a norma-padrão.

Já Ana Maria Nasser Furtado, da 8a série do Colégio Humboldt, em São Paulo, aderiu ao internetês. Ela realiza debates com a garotada sobre o assunto e alguns acham esquisito que ela escreva como eles. “Sei que é uma questão de identidade para os jovens”, conta, lembrando-se dos pais que reclamam por não entender o que os filhos digitam. Na verdade, é essa a intenção! O conflito não se dá só entre pais e filhos, mas entre os próprios jovens. “Quem tem 15 anos se comunica de forma diferente dos irmãos mais novos”, relata Ana. E, com as gerações, muda a língua, que não pára de se recriar.

Entender as mudanças da língua ajuda a...

● Combater o preconceito.
● Conhecer as diferenças entre as modalidades oral e escrita.
● Adequar o uso das variantes lingüísticas de acordo com o contexto.

2 comentários:

Anônimo disse...

isso parece uma marcação de território próprio de mamíferos.

Paulocaxeira disse...

A imediatidade é a língua+próxima do pensamento para competir com o replicante!