quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Os contos de Machado de Assis

Nos colégios e cursos de Letras há uma tendência natural de privilegiar os romances do autor, especialmente Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. São textos geniais, originalíssimos, e colocam a narrativa brasileira em um lugar de destaque na literatura mundial. Mas são também textos complexos, não só pela fascinante ambigüidade de seus protagonistas, como pelos jogos e armadilhas que o narrador de cada um deles prepara, levando o leitor de um lado para outro, desfazendo todas as certezas, relativizando tudo e criando um mundo ficcional no qual o modo de contar a história é tão ou mais importante do que a própria história. Os capítulos curtos, as fragmentações, as contínuas digressões, as ironias e os comentários paralelos de Brás Cubas e Bentinho constituem o verdadeiro núcleo desses relatos.

Diferentemente do que faz nas narrativas longas, Machado de Assis obedece, nas histórias curtas, aos princípios essenciais do gênero: concisão, rapidez e unidade dramática. O maior dos contistas, o russo Tchecov, dizia que, se num conto aparecesse uma espingarda pendurada em alguma parede, ela deveria disparar imediatamente, sob pena de não fazer sentido a sua presença naquele relato. Esta exigência de brevidade e concentração é seguida à risca pelo autor de Missa do galo. Nada que não seja fundamental ao desenvolvimento da trama ou à criação da atmosfera interessa. Por isso – exceção feita de O alienista, que para alguns é uma novela – todos os seus contos transcorrem dentro de certo clima de tensão, de certo pulsar nervoso e de uma forte intensidade dos acontecimentos.

Mestre inquestionável do gênero, Machado de Assis experimentou as diferentes possibilidades de construção do relato curto. Há o conto tradicional, também conhecido como anedótico, calcado na história de final surpreendente, e cuja conclusão é o elemento mais importante do processo narrativo. Esse modelo clássico aparece em A cartomante.

Existe também um tipo de conto chamado moderno, que se concentra na criação de uma atmosfera, de um fugaz momento na vida de alguma pessoa ou de um simples flagrante do cotidiano. Nesta forma de relato, as repercussões psicológicas de ações e fatos concretos são muito mais significativas do que a construção de enredo bem arquitetado e de desfecho imprevisto. Missa do galo é a maravilhosa obra-prima de tal tendência, mas Conto de escola também figura em qualquer antologia dos melhores textos curtos brasileiros de todos os tempos.

Não podemos esquecer, por outro lado, o conto de caracteres, que procura fixar tipos humanos atormentados por angústias obsessivas e cujo comportamento é determinado por uma idéia fixa, como nos casos de Pestana, o infeliz compositor de polcas, de Um homem célebre, de Romão, o artista impotente que aparece em Cantiga de esponsais, e Jacobina, que só se sente alguém ao usar a farda de alferes, em O espelho.

O alienista situa-se na esfera do conto alegórico, na medida em que a história (pouco verossímil, num sentido estritamente realista) parece mais uma ilustração corrosiva – tanto da loucura cientificista, que assaltou os meios intelectuais, na segunda metade do século XIX, quanto da arbitrariedade daqueles que detêm alguma forma de poder – do que propriamente a investigação de uma alma opressa pela doença interior. Enquanto Pestana e Jacobina são personalidades complicadas, o doutor Simão Bacamarte (O alienista) é uma hilariante caricatura de médico e de ditador científico.

Teoria do medalhão, um dos mais deliciosos libelos do escritor contra a mediocridade intelectual e social, é o conto satírico por excelência, lembrando a ironia filosófica dos relatos curtos de Voltaire. Praticamente sem ação, seu núcleo temático gira em torno de uma exposição de idéias cínicas, através do diálogo entre pai e filho.

Em outros contos, como em O caso da vara e Pai contra mãe, avulta um Machado quase desconhecido: o ficcionista social, capaz de interrogar, na ação concreta dos homens, o que nelas é reflexo brutal da ordem vigente. Tudo isso sem panfletarismo, sem populismo, sem concessões demagógicas. A cena do aborto da escrava, em Pai contra mãe, vale por mil discursos contra a escravidão.

No entanto, é preciso sublinhar que todas essas classificações são insuficientes, se não inúteis, diante da grandeza dos contos que Machado de Assis criou, quase todos redigidos na fase de maturidade do escritor, entre 1882 (Papéis avulsos) a 1906 (Relíquias da casa velha).

Estrutura Social
Os relatos curtos confirmam o que já se sabia a respeito dos romances: Machado não é apenas um fino esquadrinhador de almas, mas alguém que compreende a estrutura profunda de sua época.
Entretanto, ao contrário dos prosadores do real-naturalismo, ele não crê que os homens sejam mero produto das circunstâncias. Constrói personagens que vão além do ambiente e das classes sociais, por possuírem uma natureza humana relativamente imutável.

Pensamento
Machado não se identifica tampouco com qualquer filosofia regeneradora; arrasa com o cientificismo e o positivismo; usa e abusa de citações bíblicas, mas tem dúvidas sobre a existência de Deus e o sentido das religiões; despreza a política como possibilidade de mudança e considera as ideologias como fraudes. Diante disso, deveria, talvez, ranger os dentes e gritar contra o destino. Prefere o sorriso crítico, o humour, a ironia sutil. Um crítico, escrevendo a respeito de O alienista, observou que a gente ri o tempo todo dos delírios classificatórios do médico dos loucos, das reações ambivalentes dos moradores da cidadezinha, das rebeliões contra o sábio, etc. mas que, no conjunto, a história nos transmite uma sensação de desolação. Isso é muito comum em suas obras: o riso converte-se em desconforto e reflexão critica.
Estilo
A prosa de ficção de Machado de Assis só atinge a perenidade artística por apresentar uma linguagem de máxima inventividade, de onde extrai todas as possibilidades expressivas, todas as nuanças e sutilezas. Mais de um especialista observou que o escritor realiza uma síntese entre os recursos tradicionais do estilo – havia lido de forma exaustiva os clássicos portugueses – e as inovações da língua falada culta do Brasil, na segunda metade do século XIX. Daí o sabor delicioso de seu texto, ora levemente arcaico, ora atualíssimo. Se parte do vocabulário e algumas construções sintáticas parecem, às vezes, antigas, a impressão dominante no espírito do leitor é a de modernidade estilística.

Próximo do nosso gosto contemporâneo está, por exemplo, seu repúdio à retórica, à metáfora vazia, ao adjetivo banal e aos pormenores descritivos. A postura irônica que mantém frente aos lugares-comuns e aos clichês da linguagem antecipa o deboche da geração de 1922 ao academicismo.

Para quem quiser se aprofundar no tema:

Parte I
http://educaterra.terra.com.br/literatura/temadomes/2003/01/29/001.htm
Parte II
http://educaterra.terra.com.br/literatura/temadomes/2003/01/29/000.htm

Compilado da Introdução ao livro Contos definitivos, de Machado de Assis, Ed. Leitura XXI / Novo Século.