segunda-feira, 30 de julho de 2007

Os Sermões de Vieira

Os sermões, notável conjunto de obras-primas da oratória ocidental, constituem um mundo rico e contraditório, a revelar uma inteligência voltada para as coisas sacras e, simultaneamente, para a vida social portuguesa e brasileira de então.

Neles encontramos uma grande crônica da história imediata, (Vieira jamais se absteve das grandes questões cotidianas e políticas do seu século), mas nos deparamos também com uma atormentada ânsia da eternidade, que só a religião parece atender.

Acompanhe o engenho e o brilho desse texto:

Duas coisas a Igreja prega hoje a todos os mortais: ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Mas uma de tal maneira certa, e evidente, que não é necessário entendimento para a crer; outra de tal maneira certa, e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar. Uma é presente, outra futura. (...) E que duas coisas enigmáticas são estas? Pulvis es et in pulverem reverteris. Sois pó e em pó vos haveis de converter. Sois pó é a presente. Em pó vos haveis de converter é a futura. (...)

Ora suposto que já somos pó e não pode deixar de ser, pois Deus o disse; perguntar-me-eis, e com muita razão, em que nos distinguimos os vivos dos mortos? Os mortos são pó, nós também somos pó. Distinguimo-nos, os vivos dos mortos, assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído; os vivos são pó que anda, os mortos são pó que jaz.

A mim não me faz medo o que há de ser o pó. Eu não temo na morte a morte, temo a imortalidade. Eu não temo hoje o dia de Cinza, temo hoje o dia da Páscoa, porque sei que hei de ressuscitar, porque sei que hei de viver para sempre, porque sei que me espera uma eternidade ou no Céu ou no Inferno. (...) Este homem, este corpo, estes ossos, esta carne, esta pele, estes olhos, este eu, e não outro, é o que há de morrer? Sim. Mas reviver e ressuscitar à imortalidade. Mortal até ao pó, mas depois do pó, imortal.

Quando considero na vida que se usa, acho que nem vivemos como mortais, nem vivemos como imortais. Não vivemos como mortais, porque tratamos das coisas desta vida, como se esta vida fora eterna. Não vivemos como imortais, porque nos esquecemos tanto da vida eterna, como se não houvera tal vida.

Ora senhores, já que somos cristãos, já que sabemos que havemos de morrer e que somos imortais, saibamos usar da morte e da imortalidade. Tratemos desta vida como mortais, e da outra como imortais. Pode haver loucura mais rematada, pode haver cegueira mais cega do que empregar-me todo na vida que há de acabar, e não tratar da vida que há de durar para sempre? Cansar-me, afligir-me, matar-me pelo que forçosamente hei de deixar, e do que hei de lograr ou perder para sempre, não fazer nenhum caso? Tantas diligências para esta vida, nenhuma diligência para a outra vida? Tanto medo, tanto receio da morte temporal, e da eterna nenhum temor? Mortos, mortos, desenganai estes vivos. Dizei-nos que pensamentos e que sentimentos foram os vossos, quando entrastes e saístes pelas portas da morte. A morte tem duas portas. Uma porta de vidro por onde se sai da vida; outra porta de diamante, por onde se entra à eternidade.


Sermão de Quarta-feira de Cinzas, pregado em Roma, no ano de 1672.
Características:
  • Utiliza continuamente passagens da Bíblia e todos os recursos da oratória jesuítica para convencer os fiéis de sua mensagem, mesmo quando trata de temas cotidianos.
  • Ataca os vícios (corrupção, violência, arrogância etc.) e defende as virtudes cristãs (religiosidade, caridade, modéstia, etc.).
  • Combate os hereges, os indiferentes à religião e os católicos desleixados em relação à Igreja.
  • Defende abertamente os índios. Mantém-se ambíguo frente aos escravos negros: ora tenta justificar a escravidão, ora condena veementemente seus malefícios éticos e sociais.
  • Exalta os valores que nortearam a construção do grande Império português. E julga (de forma messiânica) que este Império deveria ser reconstruído no Brasil.
  • Propõe o retorno dos cristãos novos (judeus) a territórios lusos como forma de Portugal escapar da decadência na qual naufragara desde meados do século XVI.
  • Apresenta uma linguagem de tendência conceptista, de notável elaboração, grande riqueza de idéias e imagens espetaculares.

Por esses e outros aspectos Fernando Pessoa o chamou de "Imperador da Língua Portuguesa".

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