Personagens:
Guaixará, rei dos diabos
Aimbirê, criado de Guaixará
Saravaia, criado de Guaixará
Tataurana, Urubu, Jaguaruçu, e Caboré, companheiros dos diabos
Décio, imperador romano
Valeriano, imperador romano
São Sebastião, padroeiro do Rio de Janeiro
São Lourenço, padroeiro da aldeia de São Lourenço
Velha
Anjo
Temor de Deus
Amor de Deus
Acompanhantes
Meninos
A peça foi apresentada pela primeira vez por volta de 1585, no Terreiro da Capela de São Lourenço, em Niterói.
TRECHO
SÃO LOURENÇO Quem és tu?
GUAIXARÁ Guaixará, o ébrio.
Sou o grão boicininga e jaguar.
Como gente, sei brigar.
Voador, andirá-guaçu,
Demônio que quer matar.
SÃO LOURENÇO E esse, então?
AIMBIRÊ Jibóia e socó,
Sou o grão índio tamoio Aimbirê.
Sou sucuriju, gavião,
Tamanduá feio, diabão,
Luminoso como quê!
SÃO LOURENÇO Mas que quereis, que buscais
Na terra que me pertence?
GUAIXARÁ Amando os índios, não pense
Alguém que aqui manda mais
Do que nós, que ninguém vence.
Deles, como coisa nossa,
Gostamos sinceramente.
SÃO LOURENÇO Mas quem há aí que vos possa
Ter confiado, como vossa
Propriedade essa gente?
Deus foi quem
O corpo e uma alma também
Quis dar a essa gente amiga.
GUAIXARÁ Deus? É possível... Porém
Seus costumes não são bem
Coisa lá pra que se diga...
É gente ruim:
Nega a Deus, peca, e por fim
Disso tudo ainda se gaba.
AIMBIRÊ A cuia das velhas, sim,
É que é bom, quando o cauim
Regurgita na igaçaba.
As cabeças da festança
Amortecem-lhe o valor. E
xcitada pela dança,
Desrespeita ao Criador:
E ganhamos o seu amor.
SÃO LOURENÇO
De certo não têm vontade
De vir rezar quando é hora?
Esquivam-se? Vão-se embora?
AIMBIRÊ Tal e qual. Sua piedade
É da boca pra fora.
SARAVAIA Isso é que é. Lá entre os seus
Cada um deles, sem temer,
Provoca a Deus a valer,
Dizendo: "Será que Deus tem olho pra me ver?"
(SURGE SÃO SEBASTIÃO)
SÃO SEBASTIÃO Alguma rata nojenta?
Um catingudo gambá?
Será que és a noite má
Que as galinhas afugenta
E empobrece o índio? Será?
SARAVAIA Passei a noite com fome dessas almas,
De atalaia...
GUAIXARÁ Cala a boca, Saravaia!
SARAVAIA Não pronuncies o meu nome,
Que ele me mata à tocaia!
Esconde-me dele,
E eu fico espionando por ti.
GUAIXARÁ Dir-lhe-ei que não te vi.
Oculta-te e cala o bico.
Depois sairás daqui.
SARAVAIA Vou meter-me em qualquer parte.
Ainda bem que não me viu...
SÃO SEBASTIÃO Arreda, que vou flechar-te!
GUAIXARÁ Está dormindo um pouco... Psiu...
SÃO SEBASTIÃO Passou a noite acordado,
Tentando índios por aí afora!
SARAVAIA (De fato. Ele não ignora...)
(GUAIXARÁ AÇOITA SARAVAIA)
GUAIXARÁ Por que não ficas calado?
Olha que ele te devora!
SARAVAIA Ui! Ai de mim!
Por que me bates assim?
Não há olhos que me vejam...
AIMBIRÊ Retirai-vos já, que eu vim
Ver meus súditos, enfim,
Que há muito eles me desejam.
SÃO SEBASTIÃO E quem são eles?
AIMBIRÊ Os velhos da aldeia,
Os moços, as moças, todos que eu prender.
Todos aqueles cujas peles
Tenho sob o meu poder.
Direi os vícios da taba
Para que creias em mim.
SÃO SEBASTIÃO Seja! Ouvirei até o fim.
AIMBIRÊ Têm sempre cheia a igaçaba
E nunca falta o cauim.
De tão bêbados
Não há quem se fira, brigando.
SÃO SEBASTIÃO O velho morubixaba já os advertiu,
Censurando.
AIMBIRÊ Censura os índios? Pois sim!
O próprio festeiro, às claras,
Convida a todos assim:
"Morubixás, moçacaras,
Vinde todos, vinde a mim!
"Então, toda a rapaziada
Aceita o convite, e vem
Banquetear-se, e se entretém
A atacar as moças, cada
Qual como mais lhe convém.
GUAIXARÁ Espera aí, que te ajudo!
As velhas brigam e mentem.
Ódio apenas é o que sentem!
Vão maldizendo de tudo,
E as que calam, consentem...
Vivem pecando as danadas,
Vagabundas, tagarelas,
Tomando filtros, com que elas
Esperam fazer-se amadas
E até tornar-se mais belas.
AIMBIRÊ E esses rapazes, então,
Que vivem importunando
As mulheres, cobiçando
Escravas do branco, e vão
Covardemente escapando?
GUAIXARÁ Seria um nunca acabar,
Ainda que o sol entrasse!
A taba é que é pecar!
SÃO LOURENÇO Mas existe a confissão,
O remédio salutar
Para a alma enferma curar.
E, depois, a comunhão,
Que faz de todo sarar.
Contrito, o índio se prepara,
Depois vai se confessar:
"Eu quero ser bom", declara.
E o padre o abençoa
Para a ira divina aplacar.
GUAIXARÁ É como se não tivessem pecados
Que se confessam!
Suas faltas todas cessam,
Seus vícios desaparecem
Mas logo mais recomeçam!
AIMBIRÊ E, já perdoados,
"De todos os meus pecados
Me arrependo até a morte",
Dizem esses descarados.
GUAIXARÁ Não te basta?
Aí estão desfiadosS
eus ardis de toda sorte.
SÃO LOURENÇO Odiando-os dessa maneira
O que quereis é perdê-los.
Mas junto a mim hei de tê-los,
Suplicando a Deus que queira
Para sempre defendê-los.
Confiaram em mim, primeiro,
Construindo esta capela,
Curando-se à sombra dela,
Tomando-me por padroeiro,
Pedindo a minha tutela.
GUAIXARÁ Confiaram por um momento.
Hás de auxiliá-los em vão,
Que eu os terei em minha mão.
Eu vôo como este vento,
E comigo eles voarão.
Aimbirê, vamos depressa,
Porque nos esperam nossos crentes.
AIMBIRÊ Ranjo as presas como quê...
Eis meus chifres e minhas unhas. Vê?
Meus longos dedos, meus dentes!
ANJO Não o espereis, pois não penso
Deixar esta aldeia à mão.
Aqui estou eu, seu guardião,
Ao lado de São Lourenço,
Junto de São Sebastião.
Coitados de vós, que o eterno
Rancor de Deus provocastes!
Esta aldeia perturbastes!
Há de queimar-vos o inferno!
Prendei-os! Que isso lhes baste!
Fonte:
http://www.brazilsite.com.br/teatro/teat01b.htm